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Robinson
Crusoé
Celebrei
o vigésimo sétimo aniversário da minha vida na ilha de modo especial. Tinha
muito a agradecer a Deus, agora mais do que antes, já que os três últimos anos
foram particularmente agradáveis ao lado de Sexta--Feira. Tinha também o
estranho pressentimento de que este seria o último aniversário comemorado na
ilha.
O
barco estava guardado, em lugar seco e protegido, esperando a época das chuvas
terminar para empreender a viagem até o continente. Enquanto aguardava tempo
bom para lançar-me ao mar, eu preparava todos os detalhes necessários ao
sucesso da jornada: armazenar milho, fazer pão, secar carne ao sol,
confeccionar moringas de barro para transportar água... Sexta Feira andava pela
praia, à procura de tartarugas. Voltou correndo, apavorado.
— Patrão, patrão! Três
canoas estão chegando com muitos inimigos! Já estão muito perto...
Também
me assustei. Não contava com o inesperado: os selvagens não vinham à ilha no
tempo das chuvas. Espiei-os do alto da paliçada com os binóculos. Desembarcavam
muito próximos do meu ―castelo‖, logo depois do ribeirão. O perigo nunca fora
tão iminente...
— Não são gente do seu
povo, Sexta-Feira?
— Não, patrão. São
inimigos. Eu vi direitinho...
— Assim de tão longe?
Como é que você sabe?
— Eu sei. São todos
inimigos. Talvez, o objetivo de todos eles seja me pegar!
Acalmei-o.
Claro que não tinham vindo até a ilha por causa dele! Já se passara muitos
anos..., mas, de qualquer forma, o perigo era grande. Estavam tão próximos que
poderiam descobrir-nos facilmente. Se quiséssemos ter alguma chance de
sobrevivência, precisávamos atacá-los primeiro, quando não esperassem. Era
fundamental fazer da surpresa nosso terceiro guerreiro!
— Você pode lutar? — perguntei ao meu
companheiro.
— Sexta-Feira pode guerrear sim, patrão! Basta
dizer o que devo fazer...
Carreguei
duas espingardas e quatro mosquetes com chumbo grosso para dar a impressão de
muitas balas. E preparei ainda duas pistolas. Reparti as armas de fogo com
Sexta-Feira e rumamos para o acampamento dos antropófagos. Eu levava também a
espada, presa à cintura, e meu companheiro, seu inseparável machado. Protegidos
pelas árvores, chegamos a menos de quarenta metros do inimigo.
Na
hora, não pude contá-los todos. Posteriormente, somando os mortos e os
fugitivos, descobri que eram vinte e um. As chamas da fogueira já ardiam, como
línguas vorazes à espera da gordura humana, que pingava de membros e partes
cortadas para alimentar sua gula.
Eu
relutava em atacá-los. Estava mesmo disposto a aguardar o máximo possível,
escondido no meio do bosque. E, se descobrisse que iriam embora sem andar muito
pela ilha, deixá-los-ia voltar sem importuná-los.
O
grupo todo encontrava-se ocupado em soltar as cordas que prendiam mãos e pés de
um prisioneiro. Por fim, desmancharam a roda que ocultava o condenado à morte e
o arrastaram para perto do fogo. Meu Deus, o prisioneiro era um homem branco!
Não, não iria aguardar os acontecimentos. Um homem cristão como eu estava
prestes a ser devorado por selvagens antropófagos... Na minha ilha. Eu não
podia deixar aquela bestialidade prosseguir!
Fiz
sinal a Sexta-Feira. Estava pronto? Então que atirasse com a espingarda, que
seguisse meu exemplo...
— Agora, Sexta-Feira! — berrei.
Os
dois tiros ecoaram simultaneamente. Por um instante, o mundo parou. Horrorizados,
os selvagens viram vários dos seus guerreiros caírem sem vida. Não conseguiam
compreender de onde vinha a morte. As espingardas, carregadas com chumbo
grosso, provocaram um enorme estrago entre os inimigos: cinco caíram mortos,
três outros feridos. [...]
O
mundo então pareceu vir abaixo: a praia virou um enorme pandemônio. Tínhamos
sido descobertos, mas ainda assim os selvagens não se atreviam a atacar-nos.
Gritos de guerra e raiva misturavam-se aos de dor dos feridos.
Corri
ao encontro do inimigo, Sexta-Feira seguiu atrás de mim. No meio do caminho, já
na areia da praia, paramos para garantir a pontaria do tiro do último mosquete
carregado. Mais alguns mortos e feridos caíram ao chão. Os que ainda se
mantinham em pé não sabiam se corriam ou se lutavam. Fomos ao seu encontro.
Ao
passar pelo homem branco, entreguei-lhe minha pistola: podia precisar dela para
defender-se. A luta prosseguia, agora num combate corpo a corpo. Matei mais
dois, três, quatro — não posso precisar quantos — com a espada. [...] Ainda
assim, três inimigos conseguiram saltar dentro de um dos barcos e fugiram para
o mar. Dois pareciam ilesos; o outro sangrava, estava gravemente ferido. [...]
Corremos
para a outra canoa, encalhada na areia da praia. Antes de fazê-la navegar,
descobrimos, deitado no seu fundo, mais um prisioneiro amarrado. De repente, a
máscara de guerra, em que se transformara o rosto de Sexta-Feira, tornou-se
doce e suave ao avistar o velho homem, imóvel no chão do barco.
Sexta-Feira
tratou-o com muito cuidado, dedicação e carinho. Soltou o velho, sentou-o,
abraçou-o, apoiou sua cabeça contra seu forte peito, enquanto afagava com mão
de criança seus cabelos... Sem o saber, Sexta-Feira acabara de salvar da morte
o seu próprio pai. Os fugitivos já iam longe no mar. Era inútil persegui-los.
[...]
Disponível em:
http://blog.educacional.com.br/quartavalinhos/files/apostila-de-recuperacao-paralela-continua-lp-1-per-2011.pdf,
acesso em 14 de maio de 2020.
Vocabulário:
Antropófago:
ser humano que se alimenta de carne humana.
Bestialidade:
comportamento que assemelha o homem à besta (―animal‖); brutalidade, estupidez,
imoralidade.
Moringa:
vaso de barro bojudo e de gargalo estreito usado para acondicionar e conservar
fresca e potável a água.
Mosquete:
arma de fogo similar a uma espingarda.
Paliçada:
cerca feita com estacas apontadas e fincadas na terra, que serve de barreira
defensiva.
Pandemônio:
mistura confusa de pessoas ou coisas; confusão.
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