DATA 25/08/2020
Leia o conto e responda às perguntas .
OBS: Não precisa copiar. Coloque a
data, o nome do texto e as respostas.
As formigas
Lygia Fagundes Telles
Quando minha prima e
eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho
sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por
uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
– É sinistro.
Ela me impeliu na
direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas
oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o
fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer
refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada
velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi
sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a
asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas
aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho- escuro, descascado nas
pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça
na minha direção.
– Estudo direito.
Medicina é ela.
A mulher nos examinou
com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada
tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis
velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas
que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados
salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um
acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de
vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui,
estava sempre mexendo neles.
Minha prima
voltou-se:
– Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a
estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não
podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos
que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha
pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho,
estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a
mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o
plástico. Parecia fascinada.
– Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
– Ele disse que eram de adulto. De um anão.
– De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas
que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí –
admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de
cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
– Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode
ficar com ele. (...) A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada
final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos
seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
[...] Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de
cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro
do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido
como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos
numa caixa.
– Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum
ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar
ele.
[...]
– De onde vem esse
cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o
assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
– É de bolor. A casa
inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido
no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima,
cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar,
tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no
chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
– Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
– Essas formigas.
Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei
com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta
debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de
ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha
exemplar.
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem
trilha de volta, só de ida – estranhei.
– Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
– Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o
caixotinho. Levantou o plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.
– Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas
descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
– Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não
ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas
bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou fartamente
o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma
equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro
na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a
cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
– Esquisito. Muito
esquisito.
– O quê?
– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro
que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão
do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé
e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de
formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que
escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava
as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do
assoalho.
[...]
Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então
entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha
desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército
massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no
caixotinho coberto.
Quando cheguei por
volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida
que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio
voraz. Então me lembrei:
– E as formigas?
– Até agora, nenhuma.
– Você varreu as
mortas?
Ela ficou me olhando.
– Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
– Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse
chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se
preocupava.
– Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
[...]
Abri os olhos com
esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente
estrábica.
– Elas voltaram.
– Quem?
– As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão
todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo
percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação
até de formigar lá dentro. Sem caminho de volta.
– E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
– Aí é que está o
mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi,
devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está
me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? Não
tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro,
lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais
grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas
agora estou certa, pouco a pouco eles estão… estão se organizando.
– Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma
ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
– Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele
assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás
da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o
esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
– Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
[...]
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve
festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que
me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o
bule fumegando no fogareiro.
– Hoje não vou
dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda
estava limpo. Me abracei ao urso.
– Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez
engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
– Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não
apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei
com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o
anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda!
Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava
lívida. E vesga.
– Voltaram – ela
disse.
Apertei entre as mãos
a cabeça dolorida.
– Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com
sua voz.
– Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando
acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o
que eu esperava…
– Que foi? Fala
depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
– Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro,
só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos
embora daqui.
– Você está falando sério?
– Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e
vazios os armários escancarados.
– Mas sair assim, de
madrugada? Podemos sair assim?
– Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde.
Vamos, levanta.
– E para onde a gente
vai?
– Não interessa,
depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique
pronto.
Olhei de longe a
trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a
gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas
pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta
aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei
a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
Disponível em: .
Acesso em: 03 nov. 2016.
1.
De acordo com esse texto, como era a dona da pensão em
que as moças foram morar?
2.
No fragmento “ O quarto não podia ser menor, com o
teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de
gatinhas”, com que sentido a expressão destacada foi empregado?
3.
O conto é um texto curto que pertence ao grupo dos
gêneros narrativos ficcionais. Levando em conta as características do gênero,
qual a finalidade do gênero Conto?
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